Banco lotado. Um dia como outro qualquer com um monte de gente entediada e, por que não, irritada, com o tempo perdido na fila de espera. Sentados diante dos caixas, aglomeram-se os clientes, absortos em seus próprios problemas e pensamentos. Uma plateia silenciosa do cotidiano entediante das agências bancárias. Silêncio só rompido pelo sinal eletrônico das senhas. De repente, um casal de idosos, que batizei de João e Maria, virou a atração no “palco”. João, bem arrumadinho e de aparência distinta, passou a ser alvo de sua mulher. Aos gritos, ela o repelia: “Sai daqui. Sai de perto de mim. Vai pra lá”, enquanto ele tentava ajudá-la no caixa. A agressão verbal continuou de forma repetitiva provocando gargalhadas nas dezenas de pessoas que aguardavam na fila.
Sereno e sem perder a compostura, João, do alto dos seus cabelos branquinhos, passou a explicar a um homem na primeira fila, perto de mim, que a vida dele agora estava um problema. Quarenta e oito anos casado com Maria; ela, com curso superior, detalhe que enfatizou várias vezes, tem mal de Alzheimer. Agora se esquece de tudo e só o agride. Ele tenta ajudá-la e é rejeitado e humilhado.Um minuto, e uma intimidade exposta pra um monte de gente, que se divertia de modo insensível com a cena inesperada. João manteve uma distância de segurança de Maria no caixa, temendo que se excedesse ainda mais. Ela, no entanto, não se deu vencida, e, por duas vezes, virou-se para o "público" agressiva, e em alto e bom som: “Se esses vizinhos vieram me encher e falar qualquer coisa de mim, você vai ver. Só quero ver se esses vizinhos vão dizer que eu sou UMA BOA SENHORA desse aí", dizia apontando para João com raiva e em tom ameaçador. Novamente gargalhadas na fila de espera. Maria e João saíram do banco levando sua história em comum, ela ainda praguejando e o repelindo, e ele, seguindo-a de perto, conformado.
Assistindo a cena pensei no quase meio século de convivência de Maria e João e nas infinitas coisas compartilhadas por eles, além da cama. Independente da idade avançada e dos males que a acompanham como o Alzheimer, concluí que, estar 24 horas por dia com alguém, cansa. A convivência ininterrupta esgota as pessoas mental, emocional e psicologicamente. Mesmo sendo essa vivência uma escolha, como a de muitos casais, ou mesmo de parentes e amigos. João muitas vezes deve ter dado alegria e prazer a Maria, e, pelo jeito, também deve tê-la incomodado bastante ao longo da vida. Por amor ou não, ela envelheceu com ele. Agora, com a mente livre das amarras do racional exterioriza esse incômodo, sem se importar com o deboche, as risadas ou a exposição pública.
Maria, também de cabelos brancos, mas bem mais amarga do que João, agora está livre pra dizer e fazer o que quiser, inclusive amar, se o Alzheimer permitir. Mas prefere desprezar o companheiro seguindo o impulso de uma memória superpovoada. Uma mente quem sabe habitada por inúmeros fantasmas e contrariedades às suas próprias escolhas durante a vida. Mas no cantinho de lucidez que ainda lhe resta, sabe que precisa da proteção de João, e segue com ele de volta pra casa, brigando. Talvez isso para ela tenha um certo sabor de vingança. Vai saber...
Uma cena no Banco do Brasil – Copacabana RJ – julho de 2009