terça-feira, 27 de abril de 2010

Cantinho de lucidez

Banco lotado. Um dia como outro qualquer com um monte de gente entediada e, por que não, irritada, com o tempo perdido na fila de espera. Sentados diante dos caixas, aglomeram-se os clientes, absortos em seus próprios problemas e pensamentos. Uma plateia silenciosa do cotidiano entediante das agências bancárias. Silêncio só rompido pelo sinal eletrônico das senhas. De repente, um casal de idosos, que batizei de João e Maria, virou a atração no “palco”. João, bem arrumadinho e de aparência distinta, passou a ser alvo de sua mulher. Aos gritos, ela o repelia: “Sai daqui. Sai de perto de mim. Vai pra lá”, enquanto ele tentava ajudá-la no caixa. A agressão verbal continuou de forma repetitiva provocando gargalhadas nas dezenas de pessoas que aguardavam na fila.
Sereno e sem perder a compostura, João, do alto dos seus cabelos branquinhos, passou a explicar a um homem na primeira fila, perto de mim, que a vida dele agora estava um problema. Quarenta e oito anos casado com Maria; ela, com curso superior, detalhe que enfatizou várias vezes, tem mal de Alzheimer. Agora se esquece de tudo e só o agride. Ele tenta ajudá-la e é rejeitado e humilhado.

Um minuto, e uma intimidade exposta pra um monte de gente, que se divertia de modo insensível com a cena inesperada. João manteve uma distância de segurança de Maria no caixa, temendo que se excedesse ainda mais. Ela, no entanto, não se deu vencida, e, por duas vezes, virou-se para o "público" agressiva, e em alto e bom som: “Se esses vizinhos vieram me encher e falar qualquer coisa de mim, você vai ver. Só quero ver se esses vizinhos vão dizer que eu sou UMA BOA SENHORA desse aí", dizia apontando para João com raiva e em tom ameaçador. Novamente gargalhadas na fila de espera. Maria e João saíram do banco levando sua história em comum, ela ainda praguejando e o repelindo, e ele, seguindo-a de perto, conformado.

Assistindo a cena pensei no quase meio século de convivência de Maria e João e nas infinitas coisas compartilhadas por eles, além da cama. Independente da idade avançada e dos males que a acompanham como o Alzheimer, concluí que, estar 24 horas por dia com alguém, cansa. A convivência ininterrupta esgota as pessoas mental, emocional e psicologicamente. Mesmo sendo essa vivência uma escolha, como a de muitos casais, ou mesmo de parentes e amigos. João muitas vezes deve ter dado alegria e prazer a Maria, e, pelo jeito, também deve tê-la incomodado bastante ao longo da vida. Por amor ou não, ela envelheceu com ele. Agora, com a mente livre das amarras do racional exterioriza esse incômodo, sem se importar com o deboche, as risadas ou a exposição pública.

Maria, também de cabelos brancos, mas bem mais amarga do que João, agora está livre pra dizer e fazer o que quiser, inclusive amar, se o Alzheimer permitir. Mas prefere desprezar o companheiro seguindo o impulso de uma memória superpovoada. Uma mente quem sabe habitada por inúmeros fantasmas e contrariedades às suas próprias escolhas durante a vida. Mas no cantinho de lucidez que ainda lhe resta, sabe que precisa da proteção de João, e segue com ele de volta pra casa, brigando. Talvez isso para ela tenha um certo sabor de vingança. Vai saber...

Uma cena no Banco do Brasil – Copacabana RJ – julho de 2009

segunda-feira, 26 de abril de 2010

O Cristo não caiu

Seguia para o Rio de Janeiro na manhã seguinte a tragédia no Morro do Bumba, ainda impressionada e triste com o que tinha visto na TV antes de sair da Região dos Lagos. Peguei a estrada pensativa, divagando sobre o destino do planeta, a destruição ambiental, a montanha de lixo eletrônico sem destino certo, o desejo da humanidade de industrialização incessante, o consumo desmedido da sociedade contemporânea, enfim... me sentindo até culpada por andar querendo trocar de celular, apesar dele ainda estar funcionando muito bem para o que de fato interessa: falar com as pessoas.

A manhã para mim estava meio sombria, chuvosa e cheia de insegurança. Medo mesmo do que está por vir. Dos avisos que meio ambiente tem nos mandado, com sinais cada vez mais ameaçadores. Até que, ao chegar na ponte Rio-Niterói, o sol estava despontando, depois de dias e dias de chuvas, trovoadas, enchentes e vítimas. Lá de cima, ao ver novamente o céu azul sobre o Rio de Janeiro, com sua paisagem de cartão postal, todos os pensamentos ruins se dissiparam. Num passe de mágica meu humor mudou e fiquei de bom astral.

Fui correndo os olhos admirando o Pão de Açúcar, a Baía da Guanabara, o Santos Dumont e pensei... é bom estar no Rio. Nesse Rio cheio de bossa, de gente louca por praia e malhação, gente que te convida para ir na casa dela mas não te dá o endereço, dos habituês dos botecos, das conversas que não levam a lugar algum, do charme da Lapa, do sanduba de pernil do Bracarense, do Leblon, da cerveja no pé-sujo da esquina, das livrarias e cinemas, de gente famosa que você esbarra em qualquer lugar, de gente anônima como eu, dos que ignoram os tiroteios e balas perdidas e parecem feliz, do estar na moda fingindo não estar, enfim de tudo que nos faz gostar tanto do Rio, apesar da estranheza inicial de quem como eu vem de outro canto do país.

Já me sentindo confortada, procurei na paisagem o Cristo Redentor e não consegui vê-lo. De repente, fiquei paralisada?! Ainda influenciada pela enxurrada de tragédias, por um milésimo de segundo, pensei: Será que ele caiu também? Não, ele só não estava visível no horizonte por causa do andaime e telas de proteção das obras de reforma. Ah, bom! Não vê-lo na paisagem do Rio causa uma sensação estranha, é como se de repente, o Rio não fosse mais o Rio. Uma identidade roubada por um batedor de carteira. Sem ele, dá um branco no cenário. Mas foi só um surto momentâneo. O Cristo continua lá de braços bem abertos e me faz sentir privilegiada por ter um Rio de Janeiro no Brasil.
Abril de 2010