domingo, 30 de maio de 2010

Moacyr Goes: A liberdade de dizer não

Rio - A liberdade consiste em poder dizer não. Não quero. Não vou. Conversava com Jaques Cheuiche, grande fotógrafo de cinema, e nos fizemos a pergunta que habita a cabeça de todo mundo: o que você faria se ganhasse milhões na loteria? Rimos das besteiras imaginadas, mas como me é peculiar, acabei pesando um pouco a conversa. Eu daria no pé.

Livre de ter que ganhar o que se pode comprar para meus filhos — educação escolar, moradia, roupas, alimentação, bens culturais, entretenimento —, estaria livre para dizer não. Diria não quando me chamassem para uma reunião com patrocinadores de arte, na qual devemos nos mostrar simpatia, erudição e capacidade de vender marcas embaladas em arte. Declinaria dos convites para contribuir com políticas culturais que jamais saem do palanque.

Não escreveria para o jornal alimentando minha precária ilusão de contribuir para tornar a sociedade mais tolerante e ordeira. Desviaria os olhos do nojo da política.

Não faria concessões para criar, viabilizando economicamente peças e filmes. Não leria nada além de livros que considero importantes. Não suportaria conversas em bares. Ouviria música muito mais, veria filmes muito mais e me calaria mais.

Em mim, o eterno embate entre a potência da ação e o niilismo estaria encerrado, vencendo a descrença absoluta no ser humano. Me tornaria muito mais insuportável aos outros, claro, e talvez minha mulher desistisse de me integrar ao mundo.

A liberdade absoluta leva inexoravelmente ou à solidão ou ao crime. Meu santo preferido é Santo Antão, que despiu-se de tudo e entrou no deserto à procura de Deus. Mas eu não jogo, não compro bilhetes e nunca serei rico. Ainda bem!

A imundície da vida tem, também, encantos e graça. Só me resta chafurdar nela. Ser prisioneiro feliz, como imaginou Camus sobre Sísifo.

Conexão Leitor-Jornal O DIA-29.05.10

Moacyr Goes-Diretor de teatro e cineasta

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