por Loisa Mavignier
Abri os olhos ouvindo os gritos das araras. Lindos pássaros azuis de barriga amarela me davam as boas vindas. Só então percebi que adormeci na Região dos Lagos, no Rio de Janeiro, e acordei quase nove anos depois em Campo Grande, Mato Grosso do Sul. Não mais que de repente, é tudo diferente, de novo. Algo como despertar de um sonho que já tive. Desta vez, em 3D. No lugar do mar, os córregos urbanizados cercados por grandes avenidas; as ruas estreitas com tráfego confuso e gente descomplicada, agora são vias largas, arborizadas e de tráfego intenso. No convívio não tem mais a Graça, Kátia, Marcão, Adriana, André, Mezinho, Fábio, Cox, Paulinha, e sim, Proença, Monica, Stoll, Denise, Celso, Renato, Fafá e tantos outros afetos que um dia deixei por aqui.
Não vejo mais os corpos bronzeados e semi-despidos circulando a beira-mar, aquela gente simples e dançante, nem ouço os uivantes ventos sudoestes zunindo nos meus ouvidos. As festas ao redor da igreja construída pelos jesuítas, as confortáveis havaianas nos pés de quase todo mundo, o estilo charmoso e único, meio superficial, do carioca, também se foram. Pelas ruas encontro pessoas super vestidas,encasacadas, comedidas, quase disfarçadas, embora cordiais. Deparo com shoppings, rodoviária com jeitão de aeroporto, bares, restaurantes e lojas elegantes, e algo me remete a Caetano Veloso, cantarolando “a deselegância discreta de suas meninas”.
O camarão, a lula e o marisco até então comprados fresquinhos no mercado do peixe, a cervejinha depois da praia, hoje amanheceram congelados e deram lugar às chipas, aos queijos e vinhos dos grandes supermercados, a um frio de tremer nas bases, aos churrascos e encontros intimistas entre amigos.
Minha cabeça antes encharcada pela lagoa Araruama, pelos mares azuis de areias branquinhas, pela política e costumes fluminenses, que, por um tempo, também foram os meus, numa piscada, se inundou do córrego Segredo, dos rios Paraguai e Taquari, de pantanal, de chamamé(música paraguaia), de feiras bolivianas, do Parque das Nações Indígenas, da construção do maior aquário de peixes de água doce do mundo, de araras coloridas.
Tantos anos separam essa transição e é tudo tão igual, ao mesmo tempo tão novo na minha velha nova vida. É confortante andar pela cidade, ler os jornais regionais, me surpreender com coisas que conheço tão bem, admirar o crescimento ordenado da Capital, o lado pitoresco do mercadão, das índias vendendo milho, pequi, mandioca, palmito guariroba, comer sobá na feira dos japoneses, tomar tereré. Reencontrar gente que não parece perceber que tanto tempo se passou. Tudo parece ter sido no dia anterior, e não, há quase 3.285 dias. Tempo em que me transportei para outra história, outra cultura, outros amigos (dos quais, aliás, sinto muita saudade).
Concluo que o tempo é inexistente. Eu sou o tempo com meus pensamentos correndo desvairados atrás do tempo. Às vezes, achando que ele se foi. Mas ele está aí do mesmo jeito: estático, embora não possa vê-lo. Quero pegar o tempo, e tenho a impressão que o perdi. O tempo não me julga, apesar do seu jeito de inquisição. Eu julgo o tempo. Eu, você, nós somos o tempo. O tempo não tem rosto, nem gosto, nem marcas. O tempo não existe. O doce e bucólico bater das ondas do mar, o voo das garças, as tainhas pulando na lagoa ficaram para trás, o agora, é uma cidade banhada de luz, é o privilégio de ver todos os dias, araras encantadoras, fazendo o maior alarde no seu tempo certo de ir e vir.
Fotos paisagens:
Loisa Mavignier
Fotos Araras: autor desconhecido
Loisa Mavignier
Fotos Araras: autor desconhecido